O que é Celas de aula?

Este blog tem por objetivo detalhar minha experiência como professora de uma unidade da Fundação Casa em São Paulo (antiga Febem)

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Big Mother

Não resisti ao trocadilho. Este título cai como uma luva sobre o tema que quero escrever: a big mother, aquela que enxerga tudo mesmo sem o insistente convite do Pedro Bial, aliás ela o faz sempre, mesmo quando convidadas a dar o fora de nossas vidas. Que olhos tem essas mulheres! Vale por todas as câmeras juntas dos realitys shows.

Como este blog trata das minhas experiências na Fundação Casa, quero contar de uma mãe específica. Escrevi este texto dentro do ônibus a caminho de casa, depois de conversar com uma mãe de um interno da Fundação. Fiquei pensando como pode ela enxergar as angústias de seu filho mesmo a distância? Ela mora numa cidade na divisa de São Paulo e Minas Gerais, ou seja, vir visitar a cria requer grande esforço: tempo, grana e disposição. Mesmo assim ela o faz religiosamente todos os domingos, pois trabalha de segunda a sábado pra poder manter a casa e comprar as passagens para essa "odisséia".

Ela me disse que sabe como seu filho está, reconhece o silêncio e o olhar dele, ele fala pouco, mas ela diz que não adianta: "que ele nem ouse esconder nada de mim" diz ela, pois se ela descobrir....
Mulher de fibra, guerreira, não tem dúvida da recuperação de seu filho, mas confidenciou a mim que confia desconfiando...

Ela contou sobre as vindas, o que conversam, o que ela traz pra ele. Entre cigarros (necessários, pois são moeda de troca) e refrigerante, muita bala e cartinha dos irmãos menores. (Cigarro e bala parecem conflitantes, não?) Depois de horas juntos, ela diz pra ele que pode falar a verdade, pode se abrir. Ele relutante, acalma a mãe, que vai embora pensativa, mas diz saber "ler"os olhos dele.

Se soubesse fazer poesia faria uma para ela, espero que consiga transmitir o que senti mesmo em forma de post.

Tirando a Alice do país das maravilhas

Previsível. O interesse pela Marcha pró Maconha mobiliza a sociedade de um modo geral, sendo muitos dos meus alunos traficantes, este tema é quase uma questão "trabalhista". Pensei que tratar este tema seria uma afronta, os pedagogos da Fundação não gostam que fale nada referente a sexualidade, criminalidade, drogas, leis, direitos, ou seja, o ideal é falar de "Alice no país das maravilhas"e não ter atenção de nenhum aluno. Eu não resisti, e resolvi tratar deste tema, assumi os riscos, provavelmente seria alvo de críticas, mas fiz pensando que de que adianta eu ir até lá e ficar "amordaçada"pela ingenuidade que se pretende manter?

Levei dois artigos de jornal, um pró a regularização, outro contra. Li ambos, expliquei o termo regularização, falei do  apoio a causa, das discussões, das tendencias, sobre liberdade de expressão. Todos atentos, tinha mais de 30 alunos, alguns vieram das celas do lado, pois o tema é, como disse, o motivo de alguns estarem alí privados de liberdade. Depois de muito debater, falar de tráfico (aprendi mais que ensinei!) e suas consequecias, criminalidade, pedi para que levantasse a mão quem era a favos de descriminalizar, depois que era a favos de continuar como está. Resultado: 28 pró regulamentação contra 2. O motivo destes 2 é que isso diminuiria o "corre" deles, e assim eles não teriam como trabalhar :(

Transgressão inconsciente

Vivemos numa sociedade que não quer saciar nada, quer justamente o contrário: criar mais e mais necessidades estapafúrdias para que o sujeito nunca fique satisfeito com o que tem e parta para "aventuras"insanas. Quanto mais insana melhor. São pessoas vitimadas pela atual overdose de produtos que, com pouco esforço midiático, parece serem pré requisitos para a felicidade. Viramos reféns desta doença de ter que consumir desenfreadamente.

Digo isto pensando na fala de uma professora da Fundação Casa que dá aula de matemática para os menores. Ela diz que eles tem mesmo que estar preso e sofrerem castigos severos, pois não estavam roubando comida e sim tênis, celulares ou qualquer coisa supérflua. Quando produzimos a necessidade de um tênis para provar quem somos, ela se "instala"em qualquer um, independente de classe social, idade, sexo. Estes menores também são fruto desse mundo que nos oferta tanta coisa que não precisamos, mas que fazem de nós mais poderos, mais bonitos, mais atraentes, pelo menos no imaginário.

Penso que eles cometeram crimes e devem sim pagar pelo que fizeram, porém sem colocá-los como vilões porque roubaram um tênis de marca. Nós todos produzimos e reproduzimos estas necessidade e somos todos responsáveis de alimentar essa loucura de ser extensão de um produto ou de uma marca. Eles, assim como qualquer outro adolescente, querem mais, porém o que os difere não é o desejo e sim a forma de satisfazê-lo.

De acordo com a fala de alguns alunos, há generalizado um sentimento de culpa pela ganância em querer algo que não percente a "classe"deles. O ato de roubar casas com moradores dentro pra encontar um tênis desejado fica sendo secundário. Precisamos repensar onde começa esse tipo de transgressão...

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Projeto: Era outra vez

O blog tem tido mais de 200 acessos por dia. Não esperava tamanha repercussão. Fruto deste grande interesse pelo tema, iniciei um novo projeto com meus alunos. Estamos elaborando um livro com suas histórias. A ideia é que cada um conte sua história escrevendo a partir da leitura de um livros de um ex interno na Fundação. Leio trechos e eles escrevem suas percepções, o que os levou ao mundo do crime, como é a passagem pela Fundação, entre outros temas que surgem sem a gente poder prever.

Quando fiz a proposta em celas de aula fiquei surpresa com a adesão. Uns argumentaram que ninguém se interessaria pelas histórias, outro ainda dizem que não tem nada pra contar. Estes argumentos estão sempre presentes para quem trabalha com História Oral. Apesar destes argumentos, o projeto mobilizou grande parte dos alunos. Teve aqueles que fizeram deste um projeto um desabafo, outros preferiram usar nomes fictícios. Estão nascendo histórias surpreendentes. Umas engraçadas, outras curiosas, outras ainda de cunho social pesado, tivemos até um rap!

Trabalhar com História e Memória num ambiente com a Fundação e tratar de temas tão tensos e presente na vida deles, desperta inúmeras reações. Espero saber contornar os impecílios e conduzir de forma a concluir o projeto.

O livro, provisoriamente, está intitulado de "Era outra vez", mas ainda estamos discutindo outras possibilidades. Aguardem!

Dia das Crianças numa Fundação

Nenhum adolescente gosta de ser chamado de criança, independente do seu lugar social. Dizer para os menores que eles irão receber uma festa temática do dia das crianças gerou insatisfação entre eles. Um grupo planeja musiquinhas bestializantes num universo onde o "ciranda cirandinha"vem em batidas de rap. Mesmo sendo novata na Fundação, já era previsível que esta ideia seria rejeita, conclusão: Boicote!

"Amor só de mãe"

Esta frase é uma das mais tatuadas em Fundação. Campeã! Muitas vezes acompanha um coração ou o nome da mãezinha. As tatuagens de improviso costumam ter uma coloração esverdeada, as profissionais que tem uma bordinha preta. A frase fica nos braços, num tom verde, indicando uma "verdade"entre eles.
Soube que existe um "código de ética"válido para todos. Ninguém olha a visita de ninguém! Regra básica de uma boa convivência.

Estava indo para a Fundação, mais um dia de Celas de aula. No caminho uma garoa fina e gelada. Quando desci do ônibus uma senhorinha de vestido floral com uma sacola de feira me perguntou pra onde eu estava indo. Naquela altura da rodovia não tem muita opção, ali só tem uma fábrica e o complexo penitenciário. Ao lado da Fundação fica a cadeia feminina e do outro a masculina. Respondi que ia para a Fundação. A senhorinha disse que também estava indo para lá, então ofereci uma beiradinha do meu guarda chuva, fomos sob uma chuvinha fininha, embaixo de um guarda chuva miúdo conversando. Ela então me contou sobre seu filho que é interno na Fundação.

História esta que ainda é muito recente e noticiada pela mídia, ou seja, preciso pensar em como publicar aqui no blog. Farei em breve.

Ousadia?

Não entendo nada de direito, não conheço leis e tão pouco  leis trabalhistas, mas ouvi uma história que me fez pensar sobre a proibição dos menores trabalharem.

Um dos meus alunos está de L.A (Liberdade Assistida) e imediatamente a família dele se mobilizou e arrumou em emprego para o menor, porém eles "esbarraram"nas leis. Uma delas proíbe os menores de trabalhar, ou seja, não é simples registrar um funcionário, se ele for menor então, estará fadado a esperar pela idade...

Com a preocupação do ócio permitir um novo acesso a criminalidade a mãe desse menor nos surpreendeu. Corajosa e guerreira esta mãe!Ela propôs que um estabelecimento contrate o filho dela e ela própria pagaria o salário do menor sem que ele saiba. O dono do estabelecimento assumiria o risco de ter o menino trabalhando com ele de forma irregular e receberia com isto a mão de obra sem custo.

Uma demostração de desespero e desamparo. Quando (alguns) estes menores são libertos, há um leque de possibilidades. O mundo do crime é o mais sedutor e atrativo, mesmo sabendo que estão errando, este caminho é a garantia de grana fácil. Não só grana fácil, mais muita grana de forma fácil, mulheres, poder, carros...

Enfim, precisamos repensar e propor uma alternativa para estes menores que são libertos. É como se eles estivessem, temporariamente, como peixes num áquario. Depois de um prazo são lançados no mar. Precisam mais que ter uma liberdade assistida, precisam de caminhos e possibilidades que os mantenham afastados daquilo que os colocou em celas...

Medida (des)educativa

Dar aula na Fundação é um "veneno antimonotonia", nunca sabemos o que nos espera depois da gaiola (nome do portão que divide o "mundão"do acesso aos menores). A chave da escola foi "sequestrada"e só seria entregue mediante ao "pagamento" estabelecido pelos sequestradores de chave.
Explico: não tivemos aula porque não tinha chave das celas de aula, ou seja, sem sala, sem aula. O comportamento dos alunos denunciava que eles faziam parte daquilo, mais uma travessura de adolescente. Tempos depois soube que a chave seria entregue pós o "pagamento"do resgate: maços de cigarro.

Foi neste momento que entendi porque cigarro é moeda de troca, com ele se consegue negociar com os que deveriam estar a cima de qualquer tipo de negociação. O resgate foi pago. As aulas voltaram ao normal. Os menores em conflito com a lei (é politicamente incorreto dizer menores que cumprem medida, já está em desuso este termo.) sairam desta com a sensação de que são os vitoriosos e que neste tipo de negociaçào eles tem o domínio da situação.
Uma medida deseducativa....

A odisséia da biblioteca

A odisséia começou com a ideia de sair do espaço de cela de aula. Fomos para a biblioteca, lugar onde, teoricamente, há iluminação, livros, cadeiras, mesas e um banheiro.
Nossa biblioteca tem vários exemplares de livros como "a auto biografia de Paulo Betti". Nada contra o ator, mas vamos combinar que esta literatura nada tem de atrativa para os adolescentes.

Tinha muitos alunos na biblioteca comigo, porém notei que a grande maioria deles não eram de fato meus alunos, estavam ali pela curiosidade de ver a biblioteca. Aproveitando o clima de curiosidade, peguei um livro aleatoriamente para ver a condição do livro, vasculhei as poucas prateleiras. Junto a auto biografia de Paulo Betti, encontrei livros de receita, poucos dicionários, gibis em péssimo estado de conservação.
A iluminação não é diferente da cela de aula, ou seja, insuficiente. Reclamei que estavam todos em pé, mas logo notei que havia apenas seis carteiras, o que era apenas um convite para eles sentarem em cima das mesas ou ficarem de pé.

Em frente a biblioteca mais um convite estimulante: há uma pequena salinha de televisão (tela, como eles chamam), nesta salinha há um único colchão no chão, uma espécie de espuma, que substitui o sofá.

Com este post, pretendo retomar o blog que estava "esquecido"desde o ano passado. Digo "esquecido" porque não parei de escrever, apenas de publicar. Precisava dar um tempo para que alguns acontecimentos esfriassem, precisei ter também um tempo para amadurecer algumas reflexões sobre o que vi e vivi na Fundação.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Esteriótipos, rótulos e preconceitos...

Eu sei que o mundo não progride sem pesquisas, mas às vezes esses pesquisadores viajam na maionese! Outro dia saiu uma pesquisa dizendo que os carecas tem maior chance de ter câncer de próstata, que advogados com mais de trinta anos preferem os cãezinhos yorshires, que quem come três folhas de alface por dia tem mais resistência nas unhas. Para que serve isso?

Algumas pesquisas são de uma inutilidade absurda, outras prestam um "desserviço" social, reforçam, muitas vezes, ideias preconceituosas, como por exemplo a medicina de Lambroso. Fiquei pensativa quando li uma pesquisa que dizia que adolescentes que assistem filmes violentos ou jogam vídeo games agressivos são mais violentos e desenvolvem um potencial de criminalidade. Balela!

Perguntei para os meus alunos sobre vídeo game ou filmes violentos. A grande maioria NUNCA jogou vídeo game, nem gosta de ver filmes na televisão, ou seja, o vídeo game não foi o responsável pelas ações dos meus alunos, menores infratores. Pelo que ouvi dos meus alunos, o que os levou ao mundo marginal foi a desigualdade social, a falta de educação, de emprego, de escolas, de dignidade, de moradia, isso tudo é produzido via corrupção e descaso, via políticas públicas tão inúteis quanto algumas dessas pesquisas.

Um dos meus alunos disse que o que o levou ao mundo do crime foi a ganância, minha curiosidade me fez perguntar mais, mesmo sabendo que não deveria. Ele disse que entrou armado numa casa no Morumbi porque queria dinheiro para comprar um tênis. Isso era a ganância dele,  ele contou: "apanhei feito um cachorro, e a arma era de plástico"

Quando perguntei sobre o que eles mais fazem na vida, a resposta foi em uníssono: futebol! Se fosse fazer disso uma generalização, diria que o futebol é o responsável. Um perigo, visto que nossa nação produz e vende futebol. Somos craques nisso. Simplificações são tentadoras neste mundo onde tudo é mais complexo que parece. É quase um insulto quando encontramos uma morena burra, uma loira inteligente, um poeta rico, um político honesto. Preferimos conviver com esteriótipos porque eles facilitam nossa vida, menos uma coisa pra pensar. Estatística e pesquisas existem para duas coisas: confirmarem tendências ou para serem questionadas.