O que é Celas de aula?

Este blog tem por objetivo detalhar minha experiência como professora de uma unidade da Fundação Casa em São Paulo (antiga Febem)

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Esteriótipos, rótulos e preconceitos...

Eu sei que o mundo não progride sem pesquisas, mas às vezes esses pesquisadores viajam na maionese! Outro dia saiu uma pesquisa dizendo que os carecas tem maior chance de ter câncer de próstata, que advogados com mais de trinta anos preferem os cãezinhos yorshires, que quem come três folhas de alface por dia tem mais resistência nas unhas. Para que serve isso?

Algumas pesquisas são de uma inutilidade absurda, outras prestam um "desserviço" social, reforçam, muitas vezes, ideias preconceituosas, como por exemplo a medicina de Lambroso. Fiquei pensativa quando li uma pesquisa que dizia que adolescentes que assistem filmes violentos ou jogam vídeo games agressivos são mais violentos e desenvolvem um potencial de criminalidade. Balela!

Perguntei para os meus alunos sobre vídeo game ou filmes violentos. A grande maioria NUNCA jogou vídeo game, nem gosta de ver filmes na televisão, ou seja, o vídeo game não foi o responsável pelas ações dos meus alunos, menores infratores. Pelo que ouvi dos meus alunos, o que os levou ao mundo marginal foi a desigualdade social, a falta de educação, de emprego, de escolas, de dignidade, de moradia, isso tudo é produzido via corrupção e descaso, via políticas públicas tão inúteis quanto algumas dessas pesquisas.

Um dos meus alunos disse que o que o levou ao mundo do crime foi a ganância, minha curiosidade me fez perguntar mais, mesmo sabendo que não deveria. Ele disse que entrou armado numa casa no Morumbi porque queria dinheiro para comprar um tênis. Isso era a ganância dele,  ele contou: "apanhei feito um cachorro, e a arma era de plástico"

Quando perguntei sobre o que eles mais fazem na vida, a resposta foi em uníssono: futebol! Se fosse fazer disso uma generalização, diria que o futebol é o responsável. Um perigo, visto que nossa nação produz e vende futebol. Somos craques nisso. Simplificações são tentadoras neste mundo onde tudo é mais complexo que parece. É quase um insulto quando encontramos uma morena burra, uma loira inteligente, um poeta rico, um político honesto. Preferimos conviver com esteriótipos porque eles facilitam nossa vida, menos uma coisa pra pensar. Estatística e pesquisas existem para duas coisas: confirmarem tendências ou para serem questionadas.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

"Paz sem voz.....♪♫♪♫♪♫"

"Para bom entendedor meia palavra basta".

Todos os dias ouço a seguinte pergunta quando entro na sala dos professores: "E ai professorinha? Ainda quer mudar o mundo?" Sempre sou gentil, respondo e brinco, porém entendi que a pergunta é na verdade uma afronta, uma crítica as minhas aulas, que costumam ter mais alunos que deveria. Isso não é problema pra mim, e nem deveria ser pra ninguém, até porque o salário é o mesmo independente de quantos alunos estiverem em cela. Tenho muito que trabalhar e estudar, não faz parte do meu repertório disputar aluno.

A resposta é uma: não tenho a pretensão de mudar o mundo, mas não quero que o mundo me mude para pior!  A "burrocracia" e falta de vontade trabalhar é doentia. Os baixos salários não justificam ninguém ir até a Fundação fazer de contaque trabalha. Quando vamos dar aula já sabemos que não ficaremos ricos, com poucas exceções. O que tenho a oferecer é meu trabalho, minhas aulas, minha boa vontade e dedicação.Não estou defendo aqui os baixos salários, MUITO pelo contrário, eles também me afetam profundamente, porém isso não é motivo para "fazer de conta"que trabalha.

Acho que tá dado o recado "(in)diretamente", de forma tão sutil que só faltou colocar o CEP a quem é endereçado.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

"♫ Moro num país tropical, abençoado por Deus e Bonito por Natureza ♫"

Sobre minha remuneração:

Sou professora do Estado de São Paulo desde Junho de 2011. Desde então fui OBRIGADA a abrir uma conta no Banco do Brasil, no qual eu pago mensalmente uma tarifa de $19,95. Este valor é cobrado pelo serviço básico do banco, ou seja, conta corrente e saques nos caixas eletronicos. 
Numa continha rápida, já paguei o total de tarifa $79,80. A cada ida  para a Fundação Casa gasto $6. Estando lá desde Junho, indo 3 vezes por semana, gastei $180,00. Algumas vezes tive uma "convocação"para reuniões, era um comunicado no estilo "gostaríamos muito que você VENHA a reunião". Fui. 
Acrescente a nossa continha mais $18, referente aos passes de ida e volta de 3 reuniões.
Para dar aula na Fundação, nós professores, precisamos usar avental, sem ele não podemos entrar em Celas de aula. Fui até a 25 de março e comprei um pela "bagatela" de $25, mais os passes de ida e vinda, ou seja, mais $6.
Conclusão: gastei $ 308,80!

Pergunta óbvia: quanto recebi?? NADA! Diz a secretaria que houve um problema no meu cadastro, enquanto isso trabalho, "voluntariamente",de graça :(
Parece até que salário é beneficio, fico sem argumento contra a pressão familiar, porém meu medo é ficar ainda mais sem argumento depois de receber. Seria cômico se não fosse trágico!


O mais importante é que :"♫♫ Em Fevereiro (em Fevereiro); tem Carnaval (tem Carnaval) Tenho um fusca e um violão; sou Flamengo, tenho uma nêga, chamada Tereza ♫♫"









quinta-feira, 8 de setembro de 2011

O sorriso de Jaqueline Roriz

Este blog não tem por objetivo tratar de política, corrupção, eleições, embora eu adore estes temas, e as vezes fico tentada a escrever sobre. O propósito é contar um pouco das minhas experiencias em Cela de aula, e se estes temas aparecerem por lá, serão tratados aqui também. Com a Roriz nas mídias era de se prever que alguém perguntaria sobre este episódio. Fui no trajeto pensando o que falar, como explicar o inexplicável? Como explicar que mesmo pega com a boca na botija ela foi absolvida por seus pares?

Existem dois tipos de "meliantes"(acho esta palavra horrível!) no Brasil: o que paga pelo que fez e o que assina Roriz! Pensei neste argumento, mas achei sem fundamento. Foi então que tive uma ideia, e funcionou! Ao final da aula, um dos alunos me perguntou quem era o Kadafi, e logo em seguinda sobre a Roriz. Falar de Kadafi foi relativamente tranquilo, mas sobre e Roriz...

Comecei falando sobre o sorriso dela. Ela tem um cinismo quase de artista quando é flagrada, falta-lhe uma vergonha, uma intenção de esconder o rosto com as mãos e não encarar as cameras. Mesmo flagrada na farra do dinheiro público do DF, ela mostra que não se importa com os olhares de reprovação. A risada que deixou escapar no plenário mostra a certeza da impunidade e me remeteu a dancinha do mensalão, da deputada Ângela Guadagnin, do PT fez uma "dancinha" depois da absolvição de João Magno, também do PT. Para a próxima aula, pretendo levar videos dela, e detalhar melhor a situação. Preciso pensar mais como abordar este tema, de que forma para este público.

...O "mundão"deve muita explicação aos meus alunos, os menores infratores que cumprem medida sócioeducativa....

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Tatuando os significados

As tatuagens de cadeia são verdadeiras obras primas! Como já disse em outras postagens, tem as "detonadinhas", disformes, que precisam de legenda (eles fazem legenda quando precisa!), mas a maioria é coisa de profissional.

Quando entro para dar minhas aulas, conto todo o material que levo, pois tenho que devolvê-lo na sala dos professores. No dia a dia levo 15 lápis, 15 borrachas, 15 canetas e 1 apontador. Anoto e confiro na saída. Um dia desses apliquei a provinha das Olimpíadas de Matemática, cada prova acompanhava uma folha de gabarito unida com ingénuos clipes, ingénuos só se for para mim....

Os clipes são ferramenta de tatuador de cadeia. Quando eles me entregaram as provas nenhum clipes foi devolvido, e um deles me disse que era para as tatoos. Muitos fazem tatuagens pela estética, sem se preocupar com o significado, outros fazem para serem respeitados entre os seus, marcando o corpo com símbolos de crimes cometidos e até que não fizeram, pois assim, eles terão mais dignidade num enfrentamento. (soube disso porque um aluno me confessou que está preso por tráfico, mas seu corpo denúncia entre outros crimes, latrocínio, matador de polícia, e isso dá a ele um respeito entre os seus pares)

Me chocou saber que nem todas as tatuagens são feitas com autorização do dono do corpo tatuado! Algumas tatuagens são obrigatórias e feitas de forma cruel. Entende-se que alguns crimes precisam ser marcados para que todos saibam quem não é confiável, quem estuprou ou é gay, dentre outros.

O primeiro passo é desenhar em folha de caderno com as canetas que nós professores levamos para a aula. Os cordenadores nos dizem para não deixar que eles façam desenhos, mas isso está fora de cogitação, se eu disser qualquer coisa contra, eles somem com a caneta pro banheiro e eu quase infarto! (sim, já aconteceu!)

Depois de desenhado, é transferido para o corpo, como figurinha de chiclete ploc. Em cima do desenho, são feitas as perfurações com canetas ou clipes. Existe tinta própria de tatuagens que eles conseguem de uma forma "suspeita", que não cabe a mim saber. Me limito a "desvendar"os códigos.

TEIA DE ARANHA: lembrança de um compromisso, podem ser em qualquer lugar do corpo, é preferivel nas articulações em função do movimento;

CADEADOS: tem segredos inconfessáveis, geralmente feito nas costas; (já vi no rosto! Deve ser um mega segredo!)

PONTINHOS:vária de acordo com a quantidade. Geralmente estas tatuagens de pontinhos são feitas sem autorização, na marra mesmo.
UM PONTINHO NO ROSTO: homossexualidade passiva;
UM PONTINHO NAS MÃOS (entre os dedos polegar e indicador): batedor de carteira;
DOIS PONTINHOS (entre os dedos polegar e indicador):roubo;
TRÊS PONTINHOS (entre os dedos polegar e indicador): Tráfico leve;

PALHAÇO: pequenos roubos ou furtos, geralmente feita nas costas ou braços, o dono desta tatuagem são vistos como os "ligth", os "filhotes";

CURINGA: costumam vir acompanhadas de outros códigos, como uso de drogas, armas, letras, simbolizam crimes leves, aprendiz;

CRUZ: pode simbolizar morte, segredo, assassinato, depende do contexto;

CRUZ COM CAVEIRA CENTRALIZADA: detento que exerce função de líder, confia e é de confiança de seus pares;

CAVEIRA APUNHALADA: servem para intimidar, representam que o dono dela é experiente;

MAIS DE UM CRUZ: corpo fechado, protegido por Deus e por seus grupo;

CRUZ COM VELAS: alta periculosidade, costumam ser centralizadas no peito ou no braço;

PEÇA DE QUEBRA CABEÇA: parte importante na cabeça de um grupo, aspirante a líder, dono;

CARPA DE BOCA PARA CIMA: a mais tatuada, um "clássico" de cadeia. A Carpa é o principal símbolo do PCC, se estiver de boca para cima é sinal de que o objetivo já foi alcançado, costuma ser a tatuagem principal, centralizada e motivo de orgulho;

CARPA DE BOCA PARA BAIXO: também se refere ao PCC, porém ela é mais tímida, costuma ser feita em regio˜es do corpo que podem ser facilmente tampadas, porque a mais esperada é a carpa com boca para cima, que terá lugar de destaque no corpo;

COBRA: vitorioso, ardiloso, "escorregadio", díficil manter preso;

SACI: usuário e/ou traficante de drogas, geralmente nas panturrilhas;

FOLHA DE MACONHA: usuário e/ou traficante de drogas, o tamanho da tatuagem é significativo, quanto maior, mais importante no tráfico;

DATAS: marcos importantes, pode vir acompanhado de nomes de filhos, esposas, namoradas, companheiros que morreram; (evitam tatuar nome de companheiros vivos, pois pode ser interpretado como homossexualidade, além de poder ser "caô")

NOMES: a mãe costuma ser a pessoa mais adorada pelos detentos, pois elas geralmente são as únicas visita que não costumam falhar, motivo este que merecem lugar de destaque no corpo, os nomes costumam vir acompanhados de frases, dedicatória, agradecimento;

JOGO DA VELHA: truncado, mal resolvido;

X PONTILHADO: chefe de quadrilha, geralmente é feita nas costas;

ANCORA: esperança em ter uma vida fora da "bandidagem";

CAVEIRA COM PUNHAL: esta é polêmica. Simboliza que matou policial, mas ela geralmente é falsa, pois os "mano"que realmente mataram policiais não se entregam em tatuagens, Costumam ser feitas por amadores que buscam respeito entre seus pares;

DIABO: prazer com a morte cruel, com requintes de crueldade em seus atos;

PISTOLA: preso por ter usado tal objeto para matar, geralmente fica localizada na panturrilha;

SEREIA: normalmente são as mais "detonadinhas"até porque são feitas na marra, a força, simbolizam estupro, maníacos sexuais, homossexuais que cometeram atentado violento ao pudor, ficam desenhadas de preferência na panturrilha da perna direita;

CIRCULO COM UM X DENTRO: assalto a banco, geralmente ficam discretas;

ESTRELA: funciona como um amuleto para evitar prisões, geralmente é centralizada no peito, braço ou costas;

NOSSA SENHORA: este símbolo é ambíguo, depende do contexto, do local tatuado e do tamanho. Se grande, sinal de pedido de proteçãopericulosidade, cumpre penas pesadas;

JESUS CRISTO: se estiver crucificado simboliza latrocínio e/ou assalto com vítimas; sem cruz é devoção;

ESPADA: O destemido, que não se intimida fácil, geralmente tatuada no braço esquerdo;

BARCOS: busca a liberdade, geralmente são feitas no peito, na altura do coração;

ÁGUIA: liberdade;

MULHER NUA COM GENITÁLIA A MOSTRA: usuário de drogas injetáveis; geralmente feita nos braços;

FACA: armas brancas em geral fazem apologia a este tipo de ferramenta nos crimes, pode ser punhal, lâminas;

terça-feira, 30 de agosto de 2011

O meu "circo dos Horrores"

Não pude dar aula. O fim de semana foi tenso. A unidade estava ensanguentada, sons de cadeiras quebrando, muita gritaria. Passei a manhã toda na sala de professores, aproveitei para ler meus textos do mestrado e conversar com outros colegas de trabalho, na medida do possível, pois só os sons do que acontecia me desestabilizaram...

Por uma questão política, a mídia silenciou-se, ignorou o que está acontecendo. Afinal, como causar alarde na sociedade com relação aos menores se entre uma palestra e outra, o "nosso"governador cora de felicidade ao inaugurar mais uma antiga Fundação Casa, atual, Febem??

Mais que aprender com as medidas socioeducativas impostas a esses menores, eles aprendem e ficam verdadeiros mestres na arte de negociar. Tudo é negociado: a paz, o silêncio, favores, privilégios. Para mim, toda essa negociação, lembra aquele esquema que acontece entre morros no Rio de Janeiro e Estado. Acontece uma troca, os traficantes permitem que acontecam eventos como Olimpíadas, Copa, Pan Americanos, Para Pan, mas tudo tem um preço.

Essa semana não darei aula. Decidi, com muita dificuldade e pressão familiar, que só irei para a Fundação na próxima semana, esperando que os humores estejam melhores e mais pacíficos. Quando assisti o clipe do grupo Facção Central, o circo dos horrores, eu pensei que aquilo tudo é uma realidade denunciada, mas há uma outra que fica com medo de aparecer: "paz sem voz, não é paz é medo"


 


quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Tatoos.

Elas os entregam. Denunciam os crimes cometidos. Ouvi de um dos meus alunos: "o que vale é a emoção". Um curinga, uma carpa, cadeados, folha de maconha, teia de aranha, letras avulsas, um pontinho entre os dedos, dois pontinhos, três pontinhos, um "jogo da velha", uma cruz, se for na mão esquerda é um código, na direita outro. Se a carpa estiver de boca para cima é um significado, boca para baixo, outro.

Por isso é que digo que mais aprendo que ensino na Fundação. Eles são verdadeiros artistas! Tem os desenhos "detonadinhos", mas a maioria é coisa de profissional. Eles se desenham, impregnam o corpo de marcas, códigos e mensagens. Há uma comunicação efetiva. Funciona de forma "curiosa", sem palavras, sem marcar pontos de encontro.


Perguntei para um deles porque tatuar o símbolo que denuncia que ele é um "matador de polícia". Na minha "ingenuidade", achei que seria ruim, que o deixaria  em situação de risco. Há símbolos que emitem uma mensagem de respeito, de dignidade entre os seus pares, e isso é mais seguro e mais importante que se preservar de um encontro não muito amistoso com a polícia.

Pretendo fazer um guia de símbolos, explicar o que cada um deles quer dizer. Ao contrario do que se imagina, há sim com código de conduta (não de ética, como foi recentemente falado por um juiz no Rio de Janeiro) a ser seguido. Meu objetivo com este guia não é ser invasiva nem denunciar ninguém, até porque eles mesmos o fazem. Meu objetivo é para que se entenda o significado para além dos muros que nós nos cercamos.

Arte de Menino

O período matutino não teve aula. Ficamos nós, os professores, sem entender o real motivo.
No período da tarde as celas estavam brilhando de tão limpas! Irreconhecível! Perguntei de quem era a gentileza de tal feito, então entendi porque não tivemos aula.


Arte de menino. Menino de qualquer lugar, de fundação, de colégio particular, publico, de Minas, Rio de janeiro ou São Paulo. Um grupo (sem nome, afinal, ninguém é "caô") destruiu o cano do banheiro e vazou água até inundar as celas de aula. Foi uma aventura de menino, uma arte, uma movimentação que acabou em limpeza. Um grupo escolhido (não sei qual o critério dessa escolha) passou a manhã com rodo, pano e vassouras nas mãos. Nunca vi aquele lugar tão limpo. Mais que o capricho de limpeza, me chamou atenção um sorrisinho maroto "mei de lado"de um grupo. (sem nome, como já disse, ninguém aqui é  "caô"!)

Corpos Dóceis

Sei que devia estar afundada na bibliografia do meu mestrado, afinal é um sonho, um grande privilégio estar na mesma universidade de Sérgio Buarque. Estava eu fazendo um "tur"pela biblioteca Florestan Fernandes e um título pulou em mim e me agarrou! Não tive culpa, não fui procurá-lo!

Estou lendo Vigiar e Punir. É um livro fácil, prazeroso e inteligente. De forma coerente e sedutora, Michel Foucault foi me envolvendo nos "Corpos Dóceis". Há uma grande estratégia elaborada para um Vigiar e Punir na prática. Desde as arquitetura, até os símbolos, tratos na construção e permanência de uma Fundação.

Continuo lendo, pretendo terminar até o próximo fim de semana. Leio no trajéto e no ponto de ônibus. Preciso terminar logo, pois tenho na lista do mestrado Ginzburg, Peter Burke e Emilia Viotti para próxima semana.

Quebrando Tabus

Tratar de Liberdade me parecia estranho para a Cela de aula. Não sabia exatamente como começar este tema tão importante para o Século XIX. Minha proposta era iniciar as grandes revoluções, e consequentemente, Liberdade é um conceito importante.

Pensei que ninguém melhor que eles, que estão temporariamente privados da liberdade, para me dizer o que é liberdade. Tive respostas lindas, outras que é melhor não reproduzir. O fato é que para uns liberdade é não pagar impostos, para outros é ir e vir, tem quem diga que o ápice da liberdade é o uso de drogas. Ouvindo estes "conceitos"inevitável falar da proposta de descriminalização da Maconha. Tema que trouxe até alunos de celas vizinhas. Eles tem argumento e conhecimento de causa, sabem o que dizer quando querem chocar ou sensibilizar o outro.

Falamos muito sobre escolhas e liberdade. Agora eles estão como uns peixinhos no aquário. Breve serão lançados no mar, e lá as possibilidades são muitas. A vida do crime é só mais uma delas. Falamos sobre sistema penitenciário, sobre as formas de "punição" e "educação"que eles ficam submetidos.

Uma ideia comum entre eles é que o sujeito que foi roubado é um "playboy"que não conhece nada da vida. Contei para eles que tive meu carro roubado, e que eu não sou playboy! Trabalho muito, estudo, pego horas de trânsito, chuva e poluição para poder pagar minhas contas. Quando tive meu carro roubado fiquei com as prestações que foram duramente pagas, uma a uma. Foi uma escolha, uma opção. Podia ter me rebelado e acreditado que todos que roubam são uns pivetes de rua. Esse exemplo caiu como uma luva! Acho que alguns nunca tinham visto a sociedade como um corpo que trabalha, sofre, rala, paga impostos, contas e trabalha mais para alimentar o Leão :(

Falamos de aborto, uso de drogas, sexo seguro, tatuagens e seus riscos (eles conhecem bem, me deram uma aula sobre hepatite!). O que parecia estranho foi ótimo! Não adianta dizer que estamos lá para ensinar sobre Iluminismo, eles não ficam em sala se não lhes chamar a atenção.

Fizemos avanços com a matéria, consegui explicar um pouco do que pretendia, porém preciso ir mais longe. Fiz uma pesquisa sobre os conteúdos das provinhas dos Etecs (Escola técnica) e pretendo trabalhar um pouco deste conteúdo. Eles se interessaram, levei a relação de cursos, candidato por vaga e alguns dicas sobre emprego, trabalho, salário.

A História é meu "pano de fundo"onde me ancoro, me justifico e busco respostas. Tenho conseguido falar de temas como Maçonaria, bandeiras e símbolos nacionais e até uma "alfabetização", me permito as vezes ensinar uns truquinhos da gramática. Eles gostam e perguntam mais e mais. Estou satisfeita com eles. Meu problema na Fundação não são meus alunos. Há um sistema sustentado em burocracia e "negligência salutar" que trabalha para que pouca coisa funcione de forma efetiva.




sexta-feira, 12 de agosto de 2011

(In)tolerância 2

Falar de tolerância a alteridade numa cela de aula foi estranho. Me parecia não ser chão propício para cultivar o que gostaria, mas fui levada a ele, não tive escolha.

Falávamos de ditadura, também a partir de uma pergunta de um aluno: "Psôra, é verdade que a Dilma é bandida?" Para responder fui primeiro falar sobre ditadura, regime militar, tortura (um tema meio tenso para o lugar, as vezes tenho a nítida impressão que ainda há resquícios deste tempo...).
Olhos atentos, muitas perguntas, muitas opiniões, muita imaginação. Um aluno me disse que via uma novela do SBT que trata do tema, outro já logo falou que viu um beijo entre duas mulheres nesta novela. Não resisti! Tinha a faca e o queijo na mão! Não poderia "amarelar" naquele momento! Então contei para eles que esta novela exibiu o primeiro beijo gay da televisão brasileira. O circo estava armado! Foi despejado alí todo tipo de ideia preconceituosa e até covarde frente ao (in)toleravél por eles.

O solo foi mais fértil que o imaginado! Falamos de preconceito racial, de preconceito pelas tatuagens, de ser preso carregar esta marca. Cada um contou um exemplo (até o agente penitenciário que quando vi já estava assistindo aula e participando!), uns tristes, dolorido de ouvir, outros carregados de bom humor, outros de imaginação. Contei para eles o tipo de reação que causa nas pessoas eu ser professora na Febem, eles não gostaram de ser "vítimas"do preconceito do "mundão"(nome dado por eles para tudo que fica além na cadeia)

 Depois de rir, discordar, opinar, até debater calorosamente, fiz uma pergunta: "e se eu contasse para vocês que sou gay? E se eu não tivesse marido e sim um esposa? Eu seria pior professora por isso? Eu não seria digna de respeito de vocês?

Senti que meu recado foi dado! Que sensação maravilhosa! Quase ouvi a "ficha cair"na cabeça de alguns! E para terminar com chave de ouro, fui para casa com um sonoro: "vou pensar nesta aula" de um aluno que tem 22 anos, teoricamente ele já não devia estar lá, porém ele aguarda a parte burocrática.






Quem é o merecedor do "Sarrafo"?

Leiam este comentário: (Extraído de http://www.dgabc.com.br/News/5906067/menores-se-rebelam-na-fundacao-casa-de-aruja.aspx)

Damasceno
12/08/2011 às 8:59
Por isso que eu digo, adolescente bom é adolescente morto. Deviam descer o cacetete nesses moleques...o cara rouba, mata, trafica, e é tratado melhor que o coitado do pai de família pelo governo... e apronta uma dessas? Sarrafo neles!!!

Não sei quem é Damasceno, e nem faço questão de saber. Só lamento esta mentalidade de "sarrafo neles", este é só um exemplo de como trabalhar para que as coisas não funcionem. Estando lá dentro da Fundação, temo por duas coisas em específico: primeiro pela proposta falída de cumprir medida socio educativa e outra pela segurança, não só a minha, mas a deles. Não quero assumir aqui o papel de "Salvador da Pátria", não tenho tempo, grana nem conhecimento para tal, porém acho que só quem adentra aquelas celas tem condição de dizer que tipo de gente está lá, e mais que isso, a que tipo de "respeito e orientação" aqueles que estão alí para um processo de reeducação passam.

Assim como Gentileza gera gentileza, Violência gera Violência. Os adolescente da Fundação Casa se rebelaram na noite de ontem, fazendo um professor refém na unidade de Arujá. Pior que a notícia da rebelião são os comentário insanos que ouvimos ao longo da manhã. O que me deixa transtornada é que os mesmos que são adeptos da política do "sarrafo neles" compram notebook, tenis e video game a 50 reais na praça da República. Será que não percebem que estão alimentando um ciclo? Só se rouba porque tem que compre. Quando os menores saem a "caça", eles já sabem onde vender e até para que tipo de cliente. Existe o perfil do paulistano desinformado que compra um notebook de um adolescente qualquer na rua achando que fez um negócio da China!

A minha perspectiva é que muitos menores que cumprem pena são vítimas de uma sociedade injusta e excludente. Ninguém ali nasceu com o sonho de ser traficante, fazer assaltos ou qualquer contravencão. Sou a favor sim de cumprimento de pena, porém há crimes e Crimes (sim, este com letra maiuscula). Acertar um gay na avenida Paulista por ele ter outra opção sexual que não a sua, sim, é Crime e deve ser cumprida a medida. Porém cabe aqui outra questão: Será que alguém já se perguntou a que tipo de "aprendizagem"de tolerância e respeito este menores passam?

Sarrafo gera sarrafo, mas que é seu real merecedor?

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

(In)tolerância

Desculpem pela demora em postar novos acontecimentos. Estamos em um período tenso, muita mudanças na Fundação e algumas coisas precisam ser "digeridas"antes de lançadas no blog. De forma geral está tudo indo muito bem com as aulas. Quanto mais adentro este mundo mais aprendo que muita coisas não funcionam porque tem muita gente pra complicar, atrapalhar e até estampar um puritanismo que impede de ver o outro com alteridade. A Fundação não é lugar para se trancafiar no nosso mundinho e usar o conservadorismo como escudo. (Só um desabafo....)

A cada dia sou surpreendida com alguma pergunta, posição e até mesmo comportamental. Hoje a aula foi sobre Intolerância. Eu não acreditava que teria sucesso na discussão, mas entrei nela e fomos até os 45 do segundo tempo divergindo de opiniões. Porém vim pra casa feliz, uma sensação de missão cumprida. Um dos alunos havia dito que se encontrar um gay ele não suportaria. Depois de muita divergência e até uns picos de tensão vim embora, mas observei que ao longo da aula alguns alunos viravam a cabeça ligeiramente para a esquerda, num sinal de que estavam considerando a hipótese de pensar sobre o assunto.

Isso não tem dinheiro que pague! Estou cheia de ideais para a próxima aula.

Testando os limites.

Adolescente tem a necessidade de testar os limites. Ok, até aí nada de novo. Já fui adolescente, já testei meus professores, meus pais, minha família. Tenho também um exemplar em casa. Minha filha testa todos os limites. (as vezes passa deles também...)

No meio de um aula introdutória sobre o que pretendia pra semestre, havia muita conversa paralela. Enquanto eu perguntava sobre alguns temas que eles já estudaram, eu perguntava o que eles pensavam ser história e porque estudar história. Com March Bloch guiando o que respondia para eles por História, um aluno se levantou e disse: "psôra, o papo tá bom, mas é o seguinte, eu num gosto nem de estudar e nem de história. E mais, quanto é que a senhora ganha pra vir aqui dá aula pra nóis?" Pensei na possibilidade de ignorar a pergunta, mas a turma toda estava esperando minha resposta. Então respondi que ainda não sabia, que dependia de uma série de calculos que o governos faz. Depois de um risinho arrogante ele disse: "até nóis quando vamos vender droga a gente sabe quanto vai levá, e vem você dizer que não sabe?"

Outra situação de teste aconteceu na mesma aula por outro aluno. Eles perceberam meu sotaque "estrangeiro" (é o nome dado por eles para quem não é de São Paulo) e perguntaram muito sobre minha cidade, o que tinha lá, como era. Respondi, desenhei um mapinha e expliquei como era. Um aluno falou: "Psôra volta pra tua terra. Aqui num é mole não. Já imaginou se sua filha entra pro crime?" Outro aluno falou: "É psôra! Num vale! E se sua filha entrar pra vida do crime, a senhora ia abandonar ela aqui?"

Outos testes já aconteceram e sei que ainda não passei por todos. Tento de forma coerente e séria responder na medida do possível.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

E agora José?

Empolgados com a professora nova e testando todos os limites, um dos alunos me pediu pra levar um clipe de rap. Pensando em Rap como os cantados por Gabriel Pensador não achei que fosse problema, até porque algumas letras podem ser usadas como introdução ou conclusão de um tema trabalhado.

Gostei de ideia e achei que era possível. Já fiquei pensando em qual música escolheria, pensei em levar a letra impressa e propor um dialogo, um espaço de falar e ouvir o outro. Mais que conteúdo de história, vejo a atuação do professor como uma missão de ensinar humanidade, tanto que não sou contratada com professora de História e sim professora de Humanidades.

Qaundo estava já pra sair da "cela de aula"um dos alunos me perguntou de eu conhecia o que é rap, eu achei estranha a pergunta, mas disse que sim. Ele come;cou a dizer vários nomes de rapers, letras, bandas, das quais eu nunca tinha escutado falar. Então anotei alguns nomes para fazer um pesquisa na internet.

A pesquisa foi dolorosa. A cada clipe que assistia ficava horrorizada! Primeiro porque se meu coordenador imaginasse que estava pesquisando isso, ele deixaria de me achar irresponsável, ele teria certeza! Segundo que levar esses clipes onde mostra sangue, violência, assassinato, uso de heroína, crack, me parecia não ser coerente com o que eu pretendia, além de não ser nada cofortante, tanto quanto o episódio das tesouras na cela (já contado num texto anterior). Facção Central foi o mais leve que encontrei, mesmo assim as imagens não eram indicadas para menores. Acho que o maior problema gira em torno da minha insegurança.

Não me sinto segura para conduzir estes temas. Há vias de usá-los para as aulas, porém preciso ter mais experiência e firmeza para propor e saber direcionar o que quero que seja evidenciado. Só me vinha na cabeça uma frase: "e agora josé?", a luz apagou, a esperança fugiu, a incerteza se instalou, e daí por diante. Acho que só Drummond me entenderia.

Isso me tirou o sono. Seria cobrada por eles. Pensei em Rap Gospel. Sofrível! Além do que sou professora não pastora! Talvez rap das Tchuchucas! Não tem nada alí além de bundas! Me vi sem saber o que fazer. Foi então que achei uma "melodia", as batidas do rap tocadas sem letra. Foi a visão, ou audição, do paraíso!
Vou trabalhar um tema de história e levar só a música. A proposta é que eles façam as letras sobre o  conteúdo no rap.

Assim que conseguir dar esta aula, posto o resultado aqui no blog.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

O botãozinho da consciência social

Já estava me sentindo em casa. A insegurança inicial já tinha ficado no caminho. No trajeto de casa até a Fundação vou pensando, lendo, me preparando psicologicamente. Neste dia estava feliz! Feliz por nada, sem motivo. (Felicidade não tem que ter explicação e sim tristeza) Depois de uma dobradinha na mesma cela de aula, ou seja duas aulas seguidas, me despedi. Hora de ir pra casa terminar de cumprir as tarefas diárias: ler, estudar, escrever, alimentar este blog ( acaba virando um compromisso!), tarefas domesticas, lições de casa com minha adolescente particular. 

Me despedi, desejei um ótimo fim de semana e já estava esperando o agente me liberar, abrir a grade. (Fico presa também) Quando um aluno, de uns 14 anos com cara de amiguinho da minha filha me pergunta: "a senhora não vai voltar, né?" Me surpreendi, estava até cantarolando, distraída. Perguntei porque não voltaria, então ele diminuiu minha felicidade e ligou o botãozinho da consciência e reflexão social: "Porque nóis aqui é tudo animal, tudo bicho. É o que todo mundo acha, o mundão fala isso de nóis."

Fiquei sem saber o que dizer, o que é normal pra mim, e disse de impulso que eu não achava e que por isso eu estava ali, que sou professora e não veterinária, por isso voltaria. O agente me liberou, abriu as grades e fui para casa, tentando desligar o botãzinho da consciência social e ligar o de feliz por nada.

O poder da Barba Branca

Não cabe a mim julgar, nem tenho conhecimento para tal. Saí hoje da minha cela de aula me questionando até que ponto as medidas sócio educativas atingem o objetivo com esses menores infratores presos em regime fechado.

Não tenho a solução, não sei dizer se mantê-los livres seria melhor ou pior. O que sei é que ficar preso faz mal pra cabeça, nos faz perder aquilo que temos de mais humanos que é a curiosidade. As grades são limitantes e limitadoras. Vejo alguns dos meus pares com uma vontade enorme de fazer alguma diferença, de realmente conseguir trabalhar e ver o fruto do trabalho. Eles também sofrem com o poder limitador.

Tenho um grande amigo que adoro conversar, sempre aprendo muito com ele. É um senhor de 60 anos com a força de um samurai e a criatividade aflorada. As conversas dele tem um poder transformador, muitas vezes ele diz coisas óbvias que até então eu não tinha pensado. Outro dia ele dizia sobre "apreciar" as diferenças, que só respeitá-las é pouco. O que mais gosto das muitas expressões criadas por ele é sobre o poder da barba branca. Segundo ele, só com este poder é possível perceber e compreender algumas coisas. Tal poder nos dá clareza e sensatez, nos permite ter os pés no chão e devanear na medida certa. Espero muito por este poder, porém sem a barba!

Se alguém munido deste poder adentrar a Fundação, talvez consiga diagnosticar algo que pra mim não está claro. O que vejo, é que o modelo que existe não é efetivo, é falho. Não justifica manter tal estrutura para tão pouco resultado. Por enquanto só sei apontar as falhas, não tenho a solução. Espero pelo poder da Barba Branca.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Quem é a vítima?

Opinião...

A sociedade moderna é, por excelência, baseada nas divisões e nas diferenças, sejam elas de carater social, étnico, de gênero, sexo, entre outros. Talvez o maior dos desafios seja não converter as diferenças em desigualdades, subordinando um grupo em detrimento ao outro. O papel fundamental dos Direitos Humanos é garantir a distribuição e acesso as leis fundamentais.

Profundamente atravessada por diferenças, o crime está erroneamente associado a pobreza, nela se encontram os indivíduos que, equivocadamente, são classificados como não sendo um sujeito de direitos. Essas ideias preconceituosas, que muitas vezes são alimentadas pelas mídias animam e justificam o discurso de extermínio desses sujeitos. A criminalidade é consequencia da falta de educação(formal ou não) e escolaridade, e não vinculada a pobreza. Vejo a pobreza como consequencia. Um círculo vicioso.

Dentre muitos desafios, podemos evidenciar que há um espaço reduzido para a divulgação de que forma os Direitos Humanos são violados. Não é proibido denunciar, porém o espaço em que estes temas são tratados, ainda são as mídias elitizadas, onde se alcança os já "convertidos" e adeptos da discussão, desta forma não há um constrangimento efetivo, de maneira a alterar as práticas dos sujeitos que mesmo quando violam os Direitos Humanos ficam imunes a qualquer tipo de punição em função de pertencer a determinada etnia, classe, nível de escolaridade, altos cargos políticos ou estatus social.

Os Direitos Humanos representam o direito do valor da pessoa humana, é onde, teoricamente, os indivíduos são portadores de um patrimônio comum. A temática dos Direitos Humanos diz respeito ao valor da dignidade da pessoa humana. A violação dos Direitos Humanos surge como algo que foi sentido por todos depois do que fio a experiência totalitária, cujo paradigma do horror foi o Holocausto. No Brasil começamos a usar a expressão por volta de 1960, com forte influência da Declaração Universal. O golpe militar de 64 inaugurou um período de práticas de tortura, violência, ações arbitrárias, nasce, em consequência disto, um novo Brasil. Como diz Montesquieu "a força do grupo compensa a fraqueza individual", está foi a ideologia necessária para resistir a ditadura e instaurar organizações sociais importantes para o encaminhamento e a afirmação dos valores humanos. Quando um homem é torturado ou humilhado em seus direitos básico a humanidade é ofendida.

A constituição de 1988 passa a garantir direitos sociais contundentes e cria mecanismos orçamentários, principalmente para as áreas da educação e saúde nos anos 90. O país tem uma solida e estruturada democracia, um processo eleitoral honesto, porém ainda são violados direitos civis básicos como a vida e a integridade física.

Em suma, a palavra-chave é: ACREDITAR. De nada adianta a tantas leis e normas se o que a gente percebe é a ausência disto. Acreditar em nosso trabalho, no colega de nosso convívio, no adolescente que cumpre pena.
 
... mero desabafo.

Questão de "dialetos"

A Língua Portuguesa é mesmo Maravilhosa! Tenho orgulho de falar na mesma língua de Fernando Pessoa. Os sotaques do sul e do norte, o "mineires" diferem mas se reconhecem na comunicação. O dialeto usado dentro das "celas de aula" muitas vezes, não parecem Português, precisam de tradução simultânea para que haja comunicação.

No primeiro dia que adentrei a Fundação ouvi expressões que ainda não sei transcrevê-las, com o tempo, pretendo fazer uma espécie de dicionário aqui no blog. Pode ser útil, a gente pode precisar sacar do bolso uma expressão que seja compreendida por outras tribos.

"Saia justa"II

Sei que estes verbetes de "Saias Justas" serão os mais frequentes, pelo menos até eu pegar a jeito certo de conduzir as situações que mais me tocam ou me chocam. Mas, enquanto isso não acontece, vamos a eles:

Estávamos eu e mais uns 12 alunos na "cela de aula" preparando enfeites que iriam dar cor as paredes amarronzadas e cinzentas na Festa Junina (Sim, ele tem festa Junina! E como qualquer adolescente ficam eufóricos.) Além de mim e os alunos, tinha também cola, barbante, papel para cortar bandeirinhas e 4 tesouras, as quais eu vigiava como se elas tivessem vida própria e fosse evaporar a qualquer momento. Eu era responsável por cada objeto ali, e aquelas tesouras pareciam não harmonizar com o ambiente.

Só o fato de ter esse bendito objeto cortante já me deixou mais tensa. Se caderno pode ser perigoso, que dirá tesouras, e 4! Muitas folhas de cartolina desenhadas, com mensagens de Festança mudavam a cor e os ânimos. Ali tem verdadeiros artistas! Desenhos super bem feitos, coloridos e alegres. Tem também os "detonadinhos", mas são a minoria. Arte é aflorada entre muitos deles, que fazem até suas próprias tatoos (Umas lindas e outras "detonadinhas". Umas curiosa, chamam atenção pelo simbolismo e riqueza de detalhes, outras pobres e bem simples)

Voltando ao clima entre bandeirolas e tesouras, um aluno me perguntou: "psôra que hora a senhora vai pra casa?" Eu falei que não ia demorar, seria perto das 15 horas. Ele, sagaz, percebendo talvez minha preocupação, disse: "bom pra senhora, porque as 18 vai ter rebelião". Silêncio na "cela de aula", só se ouvia o som da tesoura cortando as bandeirolas. Eu sem saber o que dizer, mais uma vez, mudei de assunto...

Ah, levei comigo para fora da cela todas as tesouras, cola, barbante...

Minha primeira "saia justa" na "cela de aula"

Além de muitas tatoos, há um outro elemento comum a todos: o enfrentamento. O clima nem sempre é tenso, como qualquer adolescente, eles estão em fase se impor valores e se auto afirmarem. O que os diferencia dos adolescentes do "mundão"(Nome que eles dão para classificar tudo que é fora da cadeia) são os valores a serem afirmados. O que é respeitado entre eles é a apologia ao crime e a malandragem. Em qualquer ambiente o ser humano precisa da aceitação do outro pra se reconhecer, aqui estamos tratando de adolescente que cumprem pena sócio educativa, os valores não são condizentes com o que se espera numa convivência harmônica social.

No último dia de aula antes de começar as féria escolares, (sim, eles também tem direito ao recesso em julho, como qualquer mortal!) ganhei de presente um porta retrato feito por um dos alunos. A orientação é nunca aceitar nada de presente, mas como dizer: "não, não quero, obrigada"ou "não posso aceitar", qualquer coisa diferente de aceitar e agradecer me pareceu agressivo, então aceitei e agradeci. De fato é um porta retrato legal, feito de origami. Está na minha sala com foto da família e todos que olham o objeto dizem: "parece coisa de presidiário" Preconceito? Identidade? Não sei o que remete a ideia....

Neste episódio o mais curioso foi a fala do aluno que me presenteou. Ele disse: "lá em casa tem uma par desse, minha mãe tem um pote de sorvete cheio de arte de cadeia. Eu sempre faço, meu padrasto também faz" O que dizer depois disso?? Minha opção, pela minha falta de preparo, foi mudar de assunto. Espero saber conduzir melhor da próxima vez.

Instintos selvagens

Surtei! Nada me convence do contrário! Para chegar na Fundação pego ônibus, trânsito, chuva (garoa com frequência), muita poluição (A Raposo Tavares tem uma poluição sólida, cinza e barulhenta), e estou contando os dias para as férias acabarem. As dificuldades para chegar na Fundação começam pelo transporte. Apenas dois ônibus passam por lá e eles são raros.

Outra dificuldade é a pressão familiar. Compreendo a apreensão do meu pai, para ele sou uma sobrevivente. Todos os dias, obrigatoriamente, ligo para ele assim que saio da Fundação, só pra garantir que estou bem. As ofertas são muitas, desde propor de me pagar o dobro pra não ir  dar aulas até chantagens emocionais. Minha mãe usa outra estratégia, ela não toca no assunto, segundo ela, sou movida pelo contra, então a tática é ignorar todas as minhas insanidades. (são muitas insanidades...)

Dar aula na "cela de aula" desperta reações até em quem não me conhece. Quando salto no ponto em frente a Fundação é possível sentir a piedade do cobrador do ônibus. Ele me segue até me ver entrar e sumir pra dentro da Febem. Há quem pergunte, como quem não quer nada, o que eu vou fazer lá. Desperta curiosidades, piedade, medo, pânico, alguns instintos selvagens.

Outro dia perguntei ao motorista se o ônibus que ele dirigia ia até a Febem, ele franziu a testa e disse: "vai sim, mas o que você vai fazer lá?" (Me senti remetida a cidade pequena. Como São Paulo nos faz ser invisíveis, ninguém nunca me perguntou nem a hora na rua. Cada um que tenha seu próprio relógio afinal!) Eu respondi ao motorista que ia trabalhar. Não satisfeito com minha explicação superficial, ele voltou a perguntar: "você vai na parte feminina?". Respondi a ele que eu dou aula na ala masculina pra menores infratores. Surpreso ele perguntou: "Não tinha nada mais perigoso pra fazer?". Imediatamente eu respondi: "Tem sim, ser motorista em São Paulo". Fim de papo.

Tudo depende do ponto de vista. Não vejo como perigo o que faço e sim como necessário e importante a ser feito. Nada contra motoristas de ônibus, muito pelo contrário. Tenho que agradecer por conseguir chegar, mesmo em meio ao caos diário, nos lugares que preciso. Sou contra as estigmatizações e preconceitos. Sei que o que colocou meus alunos como internos na Fundação foi o crime, porém vejo ali meninos que deveriam ser socorridos pela saúde pública, não pela segurança pública.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Primeiro dia em "cela de aula"

Impactante e indescritível! Uma cela como espaço de aprendizagem. Enquanto ao longo da minha graduação eu pensava em power point, bibliografias adequadas como ferramenta de ensino, agora tenho os seguintes instrumentos: voz e criatividade. Da sala de aula para a "cela de aula" precisamos pensar algumas adequações. O rap é um aliado, um meio de "comunicação" e um caminho entre mim e os alunos.

Uma breve descrição da cela: é aquilo que faz parte no nosso imaginário! Uma única janela, sendo ela lacrada e com grades. Escura e fria, tem um odor de armário fechado. Limpa, chão vermelhão liso. Na porta da "cela de aula"ficam dois "trogloditas" também conhecidos por agentes penitenciários. Estes agentes me causam muito mais medo que qualquer aluno detento. A orientação dada pelos agentes é a seguinte:"se precisar é só gritar, a gente tâmo aqui de fora." Espero sinceramente NUNCA precisar!

Os alunos não tem canetas, cadernos, lápis, borracha, apontador. Esses objetos são artigos de luxo. A cada aula nós, professores, pegamos na coordenação uma mochila com os materiais escolares contados, levamos para a "cela de aula" e temos por obrigação de sair da sala com tudo que entramos. Revistados na entrada e na saída nós, professores, somos cobrados por cada objeto que levamos pra dentro da "cela de aula". 





Ensinando e aprendendo na Febem

Não sei dizer se estou mais aprendendo ou mais ensinando. A cada dia um novo desafio. Dar aula na "cela de aula" é sem dúvida algo que não planejava. Este blog tem tem por objetivo detalhar minha experiência como professora de uma unidade da Fundação Casa em São Paulo (antiga Febem). Assim como muitos professores, só conhecia esta realidade via artigos, livros e relatos de pares que eram vistos como verdadeiros Heróis, por adentrar uma cadeia para levar um pouco de seu conhecimento. Dar aula na Fundação Casa foi uma escolha, uma opção da qual tenho muito orgulho, em função disto, pretendo não entrar na questão de remuneração pelo trabalho, só saliento que o que me motiva pegar ônibus, enfrentar trânsito, poluição não é nem de longe o salário e sim a sensação de que posso levar um pouco de Humanidade e Cidadania num espaço em que estes valores fazem toda diferença.

Motivador, inspirador, instigante. Acredito que assim defino minha entrada neste espaço. Os alunos são menores infratores reincidentes que cumprem pena socioeducativa em regime fechado.As aulas são ministradas em um espaço de cela, fico "presa" com eles e me sinto muito respeitada e orgulhosa de estar entre esses alunos, que a meu ver, são vítimas de um processo social excludente.

Meu primeiro contato: me senti protagonista de um filme como "Estação Carandiru". O som, o odor, as cores acinzentadas e amarronzadas ajudam a enfatizar o clima tenso. Logo quando adentramos o complexo, somos revistadas e monitoradas pelos agentes de segurança. Todos com vestimentas pretas e com expressão séria. Passamos pela administração e corpo pedagógico. O meu coordenador me apresentou meus colegas de profissão e deu algumas dicas, dentre elas o de nunca dar informações pessoais para os alunos. Sinto que minha maior dificuldade vai ser de manter o distanciamento necessário, acertar a medida entre o papel desempenhado como professor e de colega que permite algumas confissões.

Minha angustia e ansiedade era para conhecer o espaço onde estes menores iam me receber. Munida de avental branco e muita curiosidade fui até a unidade. Mais uma vez revistada, o agente penitenciário abriu o primeiro portão de acesso e o fechou assim que dei dois passos. Fiquei presa entre um portão de chapa e uma grade que só é aberta quando o portão de chapa atrás de mim é completamente fechado, desta forma os detentos não conseguem ver nada para além das grades. Com o perdão da palavra, a sensação que melhor descreve este momento é: Fudeu! O que eu vim fazer aqui?

A primeira vista tem uma quadra central e muito meninos de 14 a 21 anos andando, correndo, gritando. Todos com calça azul escuro com a logo da escola e sem camisa. A tatuagem talvez seja o que é comum a todos. Ao contrário do que imaginava, não senti medo e sim uma sensação que faria daquela experiência um divisor de águas na minha vida enquanto professora. Por alguns minutos fiquei rodeada de alunos, todos perguntando e pegando na minha mão para dar as boas vindas. Enquanto andava até a "cela de aula" eles me acompanhavam e a primeira pergunta que me chamou atenção foi: "psôra, de que quebrada cê é?" Não me senti acuada e sim desafiada. O que responder? Meu primeiro impulso foi dizer que não é quebrada e sim região, bairro. Imediatamente ouvi algo como: "ela não entende nossa fala..." e então respondi que seria uma troca, eu iria falar no meu "dialeto"e traduzir pra eles, em troca queria também uma tradução. A aceitação foi automática e, como todo adolescente, os teste também...