O que é Celas de aula?

Este blog tem por objetivo detalhar minha experiência como professora de uma unidade da Fundação Casa em São Paulo (antiga Febem)

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Instintos selvagens

Surtei! Nada me convence do contrário! Para chegar na Fundação pego ônibus, trânsito, chuva (garoa com frequência), muita poluição (A Raposo Tavares tem uma poluição sólida, cinza e barulhenta), e estou contando os dias para as férias acabarem. As dificuldades para chegar na Fundação começam pelo transporte. Apenas dois ônibus passam por lá e eles são raros.

Outra dificuldade é a pressão familiar. Compreendo a apreensão do meu pai, para ele sou uma sobrevivente. Todos os dias, obrigatoriamente, ligo para ele assim que saio da Fundação, só pra garantir que estou bem. As ofertas são muitas, desde propor de me pagar o dobro pra não ir  dar aulas até chantagens emocionais. Minha mãe usa outra estratégia, ela não toca no assunto, segundo ela, sou movida pelo contra, então a tática é ignorar todas as minhas insanidades. (são muitas insanidades...)

Dar aula na "cela de aula" desperta reações até em quem não me conhece. Quando salto no ponto em frente a Fundação é possível sentir a piedade do cobrador do ônibus. Ele me segue até me ver entrar e sumir pra dentro da Febem. Há quem pergunte, como quem não quer nada, o que eu vou fazer lá. Desperta curiosidades, piedade, medo, pânico, alguns instintos selvagens.

Outro dia perguntei ao motorista se o ônibus que ele dirigia ia até a Febem, ele franziu a testa e disse: "vai sim, mas o que você vai fazer lá?" (Me senti remetida a cidade pequena. Como São Paulo nos faz ser invisíveis, ninguém nunca me perguntou nem a hora na rua. Cada um que tenha seu próprio relógio afinal!) Eu respondi ao motorista que ia trabalhar. Não satisfeito com minha explicação superficial, ele voltou a perguntar: "você vai na parte feminina?". Respondi a ele que eu dou aula na ala masculina pra menores infratores. Surpreso ele perguntou: "Não tinha nada mais perigoso pra fazer?". Imediatamente eu respondi: "Tem sim, ser motorista em São Paulo". Fim de papo.

Tudo depende do ponto de vista. Não vejo como perigo o que faço e sim como necessário e importante a ser feito. Nada contra motoristas de ônibus, muito pelo contrário. Tenho que agradecer por conseguir chegar, mesmo em meio ao caos diário, nos lugares que preciso. Sou contra as estigmatizações e preconceitos. Sei que o que colocou meus alunos como internos na Fundação foi o crime, porém vejo ali meninos que deveriam ser socorridos pela saúde pública, não pela segurança pública.

Um comentário:

  1. Caríssima educadora balzaquiana, fiquei aqui, bisbilhotando interessadíssima suas descobertas na cela de aula, e quase consigo evitar meus comentários de encorajamento e admiração. De longe, dá pra adivinhar sua determinação e sua persistente obstinação, mas não dá pra ignorar os riscos e nisso compreender as aflições dos seus familiares, ou a questão um tanto deseducada do motorista. Há riscos, sim. Na vida inteira, em todo canto, há. Em casa ou nA CASA, não acha? E em cada espaço arriscamos conseguir fazer algo importante, algo interessante, algo, enfim. Estou certa de que o maior risco que move você entre os (in)visíveis é a vontade de correr esse risco: o risco de fazer alguma coisa significativa... Coragem! Josianne

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